UMA VELA PARA DALTON
Uma vela para Dalton
Clauder Arcanjo*
Para Dalton Trevisan
(in memoriam)
Caminhava lento. Os passos pequenos não representavam a grandeza de suas asas. “Vampiro de Curitiba”, assacavam-lhe.
De repente, já próximo do centenário de nascimento, o corpo fraquejou. Encostou-se na escrivaninha, sobre ela o rascunho de um novo conto: “Machos nunca ganharão mais flores”.
Quis, ao som de seu silêncio, anunciar a sua partida. Afrouxou a gola da camisa, na tentativa de deixar o peito mais solto. Como, se nunca fora de tantas liberdades?
Um anjo passou junto ao seu escritório. Ou será que descera para lhe visitar? Pouco importa. O anjo sorriu e confidenciou-lhe: “Todo vampiro é imortal, quando a imortalidade já se revela no seu sangue!”.
Quis argumentar: “Só a obra interessa”, mas o tempo presente não mais lhe permitiria. Alguém parou diante do portão e chamou por ele: “Dalton? Você mora aqui?”.
Ele não sabia mais nada, tudo lhe era indiferente. Quis revisitar “Chuva”, porém não lhe sobrara nenhum instante em compassos infantis. Ou o mundo se tornara rabugento demais?
Uma “Sonata ao Luar” seria mais propício a esse momento final em terras curitibanas. No entanto havia um brilho forte na janela, revelando uma lucidez diferente nesta segunda-feira de dezembro. Ele teria pela frente, no purgatório, “Sete anos de pastor”?
Alguém para na calçada e repara nas cortinas cerradas. “Polaquinha?” Resolve pichar o muro daquele casarão soturno entre duas avenidas sufocadas pelo trânsito apressado.
“Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu contra a multidão. Várias pessoas tropeçaram…”
Seria o corpo de Dalton, ou tropeçaram na memória tão presente que se tornara sólida? Seria relido dezessete vezes naquele dia, um conto atrás do outro.
O leitor na casa ao lado se aproxima da estante, resgata da prateleira a “Antologia pessoal”. As lágrimas não deixam identificar o nome do autor.
Restava, na fria manhã brasileira, a presença marcante de Dalton em “Novelas nada exemplares”.
Uma voz rascante grita, repetidamente: “Ele morreu, ele morreu.”
“Um menino de cor e descalço veio com uma vela”. Ficou ao pé da sarjeta enquanto lia, quase a murmurar, uma oração incomum; sem rasgos de religiosidade, apenas com a sintaxe e o acento exatos.
Ninguém veria o seu corpo ser cremado, as cinzas circunvolveriam pelas ruas, à tarde e à noite. “Pico na veia”.
Na madrugada, os cães uivaram, e a vela se apagou. Uma vela para Dalton.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.