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UTOPIA
Clauder Arcanjo*
(Pintura “Garota na janela”, de Salvador Dalí.)
Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
(Mario Quintana, em “Das Utopias”.)
— Mas isso é uma utopia, amigo!
— Ah, quem dera! Quem me dera!
— …
— Sim, eu daria tudo para me ver hoje em Utopia.
— Não estou te entendendo, Acácio.
Antes de responder, Companheiro Acácio coçou a ponta do queixo e engoliu em seco. Como se maturasse algo mais nos lábios do que no pensamento. Continuou:
— É muito comum as pessoas abusarem do uso de expressões ou vocábulos, Castilho, sem entender a origem ou o significado verdadeiro deles.
— Está então me chamando de ignorante!
Acácio respirou fundo, como se necessitasse pesar bem cada frase, a fim de evitar ainda mais alvoroço naquele diálogo. Baixou a face, revisitou a sua recente imersão no universo de Thomas More e declarou:
— Amigo Castilho, digamos que estou apenas tentando sair da superfície das palavras e conhecê-las no seu âmago. Agindo assim, creio, podemos evitar ruídos.
Nessa hora o gato Nabuco resolveu participar:
— Shzzzf… shfzzz… miau… shfzzz…
Castilho estranhou a intromissão de um animal de estimação na conversa. Acácio resolveu intervir:
— Claro, Nabuco, a questão é sempre mais profunda. Sei que você ultimamente andou visitando as páginas de Erasmo, em Elogio da loucura; as de Santo Agostinho, em A cidade de Deus; as de Aristóteles, em Ética a Nicômaco, e as de Cícero, em Dos deveres. E Utopia é, antes de tudo, uma reflexão sobre a política.
— Miau… shzzzf… miau… shfzzz… miau…
Acácio interveio:
— Castilho, Nabuco está nos alertando para o risco da soberba, pedindo que eu cite esta passagem de Utopia: “Essa serpente infernal se agarra qual rêmora ao peito dos mortais e retarda o avanço para uma vida melhor. Visto que a soberba está demasiado entranhada na natureza humana para ser arrancada com facilidade…”.
Castilho, um pouco confuso, interrogou:
— E poderemos viver num mundo utópico, sem soberba?
Nabuco olhou para Acácio, como se lhe concedendo o direito de resposta.
— O mundo sempre nos leva aos prazeres e estes tendem a ser “criações artificiais”, podendo até proporcionar uma “satisfação espúria” para uma minoria, mas ficam bem longe da verdadeira felicidade, a felicitas, esta sim objetivo da vida utopiana, acessível a todos.
— …
Nabuco complementou:
— Shfiii… shfzzziii… Miau…. shfziifizzz… Miau…
— Concordo, Nabuco — disse Acácio —, a narrativa de More sobre a ilha de Utopia é um incrível feito da imaginação, onde lá se vive de acordo com os preceitos da natureza. Refeições coletivas, palestras antes do amanhecer, eliminando a privacidade e o individualismo. Todos focados nas aspirações humanas autênticas, como se num mosteiro.
Silêncio na sala. Companheiro resolveu, então, propor a Castilho e a Nabuco:
— Que tal se, a partir de hoje, nós três nos mudássemos para Utopia? Lá seríamos os novos macarianos!
Nabuco eriçou o pelo, afiou as unhas. Castilho reuniu seus pertences e, antes de ganhar a rua, confidenciou-lhes:
— Tenho que pensar melhor, embora reconheça “sem dificuldade que há muitas características naquela república utopiana que eu de fato desejaria, mais do que aguardaria, ver em nossas próprias cidades”.
Fonte: Livro Utopia, de Thomas More, tradução de Denise Bottmann (São Paulo: Companhia das Letras, 2018).
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.